Bunda Suja
Desde que eu me entendo por gente, o Bruno e eu chamamos o Tio Paulo de "Bunda Suja". Acho que deve ter alguma coisa a ver com o fato de o próprio nos chamar assim quando éramos bem pequenos. O feitiço acabou virando contra o feiticeiro. O fato é que esse apelido, de certa forma, mostra o que o Tio Paulo era pra gente: um cara sempre alegre, sempre nos zoando e sempre fazendo todos rirem.
As minhas mais antigas memórias do Tio Paulo são uns robozinhos que viravam carros. Ele aparetemente os tinha trazido do Japão para mim e para o Bruno. Eram super legais e por mais antigos que fossem, nunca cheguei a ter robôs mais maneiros que esses. E, à medida que fui ficando mais velho, ele sempre se mostrou um cara super divertido. As idas a sua casa de Angra dos Reis eram sempre o máximo: a família reunida, os passeios de lancha, as férias... E era sempre ele à frente da bagunça: pescava, dirigia a lancha nos levando para várias praias, contava suas histórias... Às vezes, ele até me deixava dirigir a lancha, claro que sob seu atento olhar. Lembro que depois disso, sempre que nos encontrávamos, ele me chamava de "marinheiro".
E mesmo nos momentos tristes ele sempre conseguia se destacar nas minhas lembranças. Lembro-me da Missa que foi celebrada um mês depois que a vovó Yara morreu. Todos ainda tristes com a tão repentina partida da "voca" e ele contando piadas na porta da Igreja. Não que eles não se dessem bem, mas esse era o Tio Paulo: um cara que estava sempre feliz!! No aniversário dele do ano passado (novembro de 2005), quando já havia passado até por sessões de quimioterapia, ele estava sempre com aquele sorriso de sempre, brincando com todo mundo, apresentando quem não se conhecia, recebendo os convidados, sendo o Tio Paulo de sempre. Claro que com a aparência já bastante alterada, mas pra mim pelo menos, eu não consegui vê-lo de forma diferente. Pra mim, quem estava ali era o Tio Paulo de Angra, da casa da vovó, dos encontros de família, das piadas, das histórias...
Ontem, dia 26 de fevereiro de 2006, ele nos deixou...
Ontem, também foi o dia do velório e do enterro. Fui com a Lu até a capela 2 do Cemitério São João Batista, representando as "crianças". Não que as outras crianças não quisessem ter ido, mas simplesmente não podiam por motivos da vida. Encontramos vários parentes e amigos. O que eu vi desde o começo é que todos que estavam ali tinham, de certa forma, aprendido um pouco com a cartilha do Tio Paulo e não pareciam estar tristes. Claro que estavam, mas de uma maneira "tiopauliana" de ser. Ouvi alguém falando que eu não havia conhecido o Paulo carnavalesco, que ele sempre pulava o carnaval e que gostava muito (confesso: não sabia). Ouvi outra pessoa dizer: "típico... é típico... morreu no carnaval!! Só podia ser!!".
Depois de falar com a Tia Lia, percebi que algumas pessoas estavam olhando um album de retratos que, ouvi falar, foi montado pela Lidia juntamente com a Gabriela e a Fabiana por ocasião de seu aniversário de 80 anos. Depois de enfrentar uma certa fila para olhar o album, eu e a Lu conseguimos colocar as mãos nele.
Nossa!! O que eu estava por ver, eu não sabia, mas iria ser uma grande lição de vida... Eram fotos que iam desde sua juventude até o dia do seu aniversário de 80 anos (claro que colocadas lá a posteriori). A capa do album mostrava uma foto em preto e branco de um time de futebol (ou pelo menos imagino que seja de futebol) naquela pose clássica com pessoas em pé ao fundo e pessoas agachadas na frente. Imagino que deva ser o time no qual ele jogou. O legal da foto é que, na camisa de cada jogador, havia uma letra sendo que no conjunto de todos os jogadores, se lia "PAULO C L" (Paulo Coelho Leite). Aparentemente, seria uma homenagem de seu time.
Mas já daí, eu comecei a pensar: "poxa, ele deve ter sido admirado por muita gente". Assim, abrimos o album e nos deparamos com várias fotos de várias épocas da vida dele. Quando mais novo, ele tinha exatamente aquela aparência de galã de filmes à la James Dean. A Lu até soltou um comentário "Tio Paulo era um gato!! Não sabia que ele era galã". À medida que as páginas iam sendo percorridas, mais fotos iam aparecendo mostrando sua juventude, seus amigos, sua viagem para estudar no exterior, suas namoradas (essa parte não contaram pra Tia Lia)... Logo depois vinha uma foto bem antiga onde estavam ele e a Tia Lia ainda muito jovens. Era realmente um casal bonito. Diga-se de passagem, a Tia Lia, das namoradas dele, era a mais bonita... Miss Niteroi, pelo que eu sei. Em cima da foto, se lia algo do tipo "encontrou o amor da sua vida" e, virando a página, "... para formar a família repinica". Eu lembro que quando eu chegava com a minha família na casa da vovó Yara, ela sempre nos recebia dizendo "chegou a família repinica" (nunca soube o que significava, mas essa expressão sempre me trouxe boas lembranças). A partir daí, vinham fotos dos filhos, Lidia e Paulinho, depois da sua nora, Simone, do seu genro, Hugo, e depois dos netos: primeiro Gabriela e Fabiana, depois Diana e Eric. Podia-se ver ainda várias fotos de família... com a vovó, tia Yone...
Depois disso, haviam algumas fotos da sua vida profissional: a entrada dele na IBM Brasil, onde chegou a ser vice-presidente. Tinha um recorte de uma revista de 1976 sobre eletrônica no qual a capa era uma grande foto dele fazendo a cara mais séria que já vi ele fazer juntamente com os dizeres: "Paulo Leite, IBM". Será que houve um tempo em que ele "era" a IBM?
Depois disso, vinham mais fotos da família e depois vinham fotos de viagens que ele havia feito junto com a Tia Lia: Noruega, Dinamarca, Holanda, Paris, EUA... No fim, vinham algumas fotos do aniversário de 80 anos. Ele já estava com a aparência bem diferente das demais fotos, mas com o mesmo sorriso. Então, na última página, se lia algo como "feliz 80 anos... até os 90!".
Depois de ver aquele album, parece que outro Tio Paulo que eu não conhecia me foi revelado. Um exemplo de vida: uma pessoa que teve uma vida muito boa, que lutou por seus ideais, que conheceu o amor, que foi capaz de formar uma grande e próspera família, que atingiu o sucesso profissional e pessoal, que conheceu o mundo, que influenciou pessoas que o admiravam muito... mas que, acima de tudo, viveu uma vida muito feliz! Eu lembro que, quando acabamos de ver o album, a Lu comentou "ele era um Sol!". É verdade, ele iluminou a todos nós com sua vontade de viver. Ele era muito mais do que aquele tio legal que nos fazia rir... isso era só um pedacinho dele... ele era uma pessoa que fez uma diferença no mundo! Parace que, só depois de ter visto essas fotos, tudo que sempre ouvi dele foi visto como um só quadro, dentro de uma só moldura. Ele é uma grande pessoa (no presente mesmo!).
Mas tarde, no enterro, fiquei lembrando de tudo que vi nas fotos, olhando para as pessoas que me cercavam e imaginando o que ele representava para cada uma delas: um tio? Um pai? Um avô? Um marido? Um sogro? Um amigo? Um colega de trabalho? ... ou um Sol...? Será que ainda dá tempo de conseguir um pouquinho do que ele conseguiu? Será que ainda dá tempo de aprender?
As palavras do Ari na hora que o caixão estava sendo baixado ainda ecoam na minha mente: "VAI PAULÃO!!!". Tenho certeza de que, como a Lu me falou, a vovó estará lá pra te receber (talvez com um pedaço de queijo minas meia cura, que ele tanto gostava).
PS: A meu tio Paulo, posso dizer "Pode deixar... entendi a mensagem..."